08 julho 2011

Crônicas do jaleco (1) - Dia de folga



Ela levantou-se atrasada. Pelo menos era o que diziam os ponteiros do seu relógio de cabeceira já tão gasto pelo tempo de uso prolongado; foram muitos despertares cronometrados até ali, alguns meio inconscientes do desligar do pequeno aparelho, outros de sobressalto que obrigavam a correr para o banheiro e deixar o despertador aos berros sozinho e ainda aqueles tranquilos, nos quais era permitido espreguiçar, virar para o lado e ficar na cama por mais cinco minutos sem que houvesse qualquer problema.

Hoje o dia deu direito aos cinco minutos, embora estivesse atrasada. Acredito que o motivo do atraso concedeu dez minutos inclusive ao invés de cinco. Era domingo, não havia plantão no hospital naquele dia, tratava-se de atraso para uma caminhada na pracinha próxima, coisa que não havia sido feita ha muito tempo.

Não poderia protelar mais. Precisava se dar conta que existia vida fora de casa e longe do hospital; precisava mais que tudo viver um pouco também para si, e assim decidiu levantar e deixar de inventar mentalmente desculpas para não sair.

Levantou-se, olhou-se no espelho e não gostou do que viu. Sua aparência era de pessoa cansada, mal dormida... A quem queria enganar? Tratava-se realmente de uma pessoa mal dormida e cansada. Lavou o rosto rapidamente, tomou banho, vestiu-se e saiu comendo uma fruta.

A roupa, própria para exercícios, não a deixava à vontade, talvez porque nos últimos dias tivesse trabalhado demais. Engraçado como as pessoas se adaptam rapidamente a algumas coisas e esquecem-se de outras.

Por isso ela estava ali andando. Não queria esquecer-se do quanto era inexplicavelmente maravilhosa a sensação da brisa matinal no rosto, sentia-se bem rodeada dos rostos que, embora fossem de conhecidos lhe eram familiares, eram corpos que como o dela gostavam do prazer de perceber a paisagem natural da praça enquanto se exercitavam e não das paredes de uma academia.

Permaneceu caminhando durante os sessenta minutos de costume e sentou-se em um banco próximo. Cansada? Não, mentalmente renovada, pronta para iniciar novamente a rotina das enfermarias e dos tantos pacientes aos quais devotava grande parte dos seus dias... Ao seu lado uma senhora, sentada, iniciou uma conversa:

_ Não sei por que os trazem aqui.

Ela estava tão absorta de qualquer coisa à sua volta que mal percebeu que era com ela. Mas não havia mais ninguém tão próximo a ponto de escutar com clareza aquela frase, então era com ela. Olhou para a senhora, uma idosa elegante, com um vestido leve, manga três quartos, florido, rosto sereno, direcionava sua visão para um determinado lugar próximo a uma fonte com águas esvoaçantes ao vento no centro da praça com alguns prédios ao fundo.

_Ah, os cachorros! Ela viu que só poderia se tratar disso e sorriu amavelmente para a senhora.

_Sim, eles trazem os cachorros para cá e nem ao menos limpam a sujeira que eles fazem. Não deviam trazer.

_A senhora vem sempre aqui? Não a via com frequência. Parecia carente de conversa, a frase não soava como reclamação e sim como socorro, como forma de sair da solidão.

_Sempre que posso, menina. Passei um tempo na casa da minha filha em outra cidade porque disseram que eu estava doente e não podia ficar aqui sozinha, mas estou de volta.

_Que bom que voltou. Vejo que gosta daqui.

_Não gosto das pessoas, só do lugar.

_Não gosta das pessoas?

_Já vivi muito, minha querida. Vi boas pessoas nascerem e crescerem, mas está cada dia mais difícil encontrar essas. Ninguém quer saber mais de ninguém, de nada. Só trabalho e um tal de computador...

Era verdade afinal. Quantos e quantos passavam todos os dias pelas ruas sem cumprimentar até mesmo os conhecidos porque estavam tão absortos em seus pensamentos que não enxergavam o que tinha à sua volta.

O mundo, de colorido a um preto e branco com cores difusas. Importante mesmo são as redes sociais, são as fotos a serem postadas, são as horas trabalhadas. Mas onde fica a qualidade de vida? Ela própria passava mais tempo dentro de um hospital e nem sequer fazia valer a pena a visita de muitos dos pacientes dos quais não sabia nome e opinião. E todos lá eram assim!

A conversa durou uns poucos minutos somente, mas serviu para algo de grande dimensão. A senhora foi embora logo; contudo, sua semente havia sido plantada e aquela garota faria nascer uma nova visão sobre a vida a partir daquele momento.

Se importaria mais. Mais com os outros, mais com amigos e desconhecidos e, principalmente, com as pessoas que necessitariam dos seus cuidados no hospital. E assim seria. Passaria a uma pessoa melhor, a começar por conhecer o nome de cada um dos pacientes destinados a ela. E semearia esta semente, a semente do respeito ao próximo.

(Jôze Paiva)

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